quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Nada mais tenho a não ser este espaço a céu aberto, este ambiente crepuscular a lembrar o declínio dos dias.
De ti conheço o sabor do tempo, o lugar da memória a convocar a musicalidade das aves e as orações dominicais. 
Há muito que partiste! 
Aprendi devagar o alfabeto da ausência e o caminho sinuoso que se situa entre a lembrança e a memória. 
Podia agora, apenas, contemplar o mar em chamas,o corpo a declinar na sombra do sol. 
Podia esquecer as manhãs em que trocamos as palavras e os corpos.
Podia lembrar o tempo que foi de luz a iluminar o caminho.
Contigo aprendi o dialeto da luz e da sombra. Da construção e da ruína.
Contigo aprendi a amar o silêncio e o vazio, o espaço tão repleto de nós. 
Contigo aprendi a olhar o futuro. Incerto.
Ensinaste-me tanto desse lado do universo. 
A guardar a esperança!
A contemplar a beleza das pequenas coisas. 
A olhar o céu e sentir o teu abraço. 

São Gonçalves 

Foto -Camilo Rego.
Invento a cada manhã a luz que me guiará nas horas de inquietude. Nesta calmaria, converto algum desalento em esperança. 
As águas confundem o espírito. 
Os deuses habitam o espaço.
É sagrado o templo. Das árvores escuto o rumorejar do vento, e do tempo. 
E eu, aquieto- me aos desígnios das sombras. Descodifico nelas os sons do mundo, algumas incertezas. A desordem interior do lado material doshomens.
Sei que tudo o que sinto é passageiro. Sei que as palavras deixarão algum dia de fazer sentido.
Por isso me deixo deslizar neste lago de águas límpidas, espelho de alma liberta.
Quem sabe me vejas neste espelho, quem sabe, invocaras as velhas lendas celtas onde noutros tempos me transformei nos antigos rituais do solstício.
Quem sabe um dia entendas o signo visual dos cisnes em liberdade.

São Gonçalves.
Foto - Camilo Rego.
Mesmo que seja tarde aprendemos o valor do silêncio. 
A angústia pesando nos ombros, o preço do abismo.
Um filho que tarda
Uma tremura na alma, a voz conciliadora do universo. 
São tantas as dores
As minhas e as que carrego escondidas dos dias.
Tento olhar o infinito
Digo ao coração a verdade apaziguadora.
São tão poucas as coisas que me protegem.
Ameaçadora a realidade impõe -se.
O peso das dores do filho
A solidão dos dias vazios.
O murmúrio das vozes ausentes.
Sempre ausentes
Murmurantes.
E o silêncio, sempre
Habitáculo do transcendente
Ressonância da alma
Transversal
Contemplando horizontes , mutações
Metamorfoses.
A vida a tatuar as cores na pele acobreada dos dias.

São Gonçalves.
Subtrai -se ao medo o arquétipo do entendimento, a beleza deixou de ser um fenómeno intocável, aniquilam-se as máscaras de belezas artificiais, véus de seda a confundir o olhar, no inconfundível brilho a afrontar o entendimento dos homens. 
Tanto mundo, tanto universo ainda a desbravar, não há beleza efémera que substitua a profunda estética da realidade intocável. 
Se de mitos se constrói a originalidade primeira do mundo, narrativas seculares a fundamentar a evolução do universo, não é na razão que se modelam o ideal dos sonhos.
Subjaz ainda no inconsciente da humanidade a visão de mundos paralelos, o mito do intocável transcendente. A metafisica a explicar o inexplicável. Teorias vastas narrando as profundezas e a imensidão estelar.
Dualidades platónicas a explicar o significado da sombra e da luz.
O ideal de um mundo à procura de sentido.

São Gonçalves Coletânea Livro Aberto 2017
Às vezes apetece - me tanto escrever o que vejo, o que sinto.
Às vezes são tantas as palavras a extravasar de uma nascente de invisíveis emoções, dos encontros e desencontros, no afã dos dias. 
Da beleza e da fealdade do mundo, da fragilidade dos laços e da imensa sensibilidade a galgar as margens de uma vida de palavras e de silêncios, de dias de sol luminoso e de abruptas tempestades. 
Às vezes, calo -me e só o silêncio transmite o tão desejado alento. 

São Gonçalves.
Contemplo o voo das aves e afago a ternura das manhãs. Há em mim um sopro de luz a iluminar o horizonte. 

Há mim mil segredos de sentimentos esquecidos!
Há o teu nome e o teu beijo!

São Gonçalves
Digo silêncio, e oiço o murmúrio vindo dos confins da memória.
Ensaio reencontros, tentativas vãs de não deixar morrer os abraços, os laços!
Viro -me do avesso da vida, o rosto colado a muros existenciais.
Corro, rasgo os joelhos no asfalto, sangra a vida por momentos.

Olho para lado de fora da janela, ausente a vontade de recomeçar o que não pude dizer.
Sei que amanhã o sol nascerá em mim
Sei que amanhã serei palavra, rima e poema.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Nada se vê da cidade estremunhada, sopra uma brisa lenta, um beijo, uma carícia no asfalto. 
Os homens perderam - se nas crateras da vida. De um lado e do outro da ponte, o vazio e o silêncio ! 
Sós, as árvores encolhem os ramos, despojadas do vigor da primavera tardia. 
Chove uma chuva miudinha, não há sons, nem as andorinhas atravessaram ainda o oceano. 
A cidade acorda, a brisa fria da madrugada, estende um manto de sedutora solidão. 

São Gonçalves.
Sinto o silêncio da cidade dentro do templo onde, refugiada das sombras me esqueço. 
O mundo tornou -se demasiado grande para quem procura o alimento da alma. 
Entre mim e a cidade, entre mim e os homens, uma fronteira de cortinas impedem os sons de atingir o interior do altar. 
Agora, apenas a solidão inunda o espaço, e a sombra amena de um sol a a afugentar os murmúrios da noite. 

São Gonçalves

Foto -Rosa Mouzinho Santos.
Há quanto tempo estou para aqui esquecida das gentes e do mundo?
Já pouco ou nada resta deste pedaço de ferro, enferrujado, acidificado com a passagem dos anos, ao sol, a chuva, ao frio.
Ainda me lembro, quando pela manhã a água fresca enchia-me as entranhas, depois, as caricias das labaredas a crepitar a lamberem- me o corpo, devagar, aromas de árvores silvestres a transformar o líquido fresco em combustão ardente.
Legumes, carne de porco salgada, uns bagos de arroz!
E era uma alegria ver os homens e as crianças regalarem-se com esse manjar que saíra das minhas entranhas! E eu observava!
Matei a fome indizível do lavrador, do ferreiro, do mestre, da mãe e da criança.
A todos afaguei os ventres cansados e doridos
De vazios e solidões!
Tempos de labuta, tempo das grandes fomes!
Depois, chegou a modernidade, as cozinhas revestiram-se de novos utensílios.
Eu por ali fui ficando
Utilizavam-me para aquecer a água, para de vez em quando, ainda cozinhar a memória da fome e da fartura.
A memória da fome!
A memória dos sabores e aromas da infância, daqueles que partiram para longe, e chegavam depois, sedentos do passado.
Um dia atiraram- me para aqui,
Ainda servi como vaso para plantar umas plantas, salsa, alecrim, rosmaninho, uma roseira brava ainda cresceu no meu ventre cansado!
A minha utilidade era agora decorativa, mas a vaidade não me falava dos afetos, nem de ventres vazios.
Depois, até disso se esqueceram.
Sou a metáfora do tempo que passa, a solidão da serra, a aridez das pedras.
A velhice esquecida na soleira da porta, como os velhos vendo passar o mundo, os dias, as horas, a vida.
Sou um pedaço de ferro, enferrujado, sem serventia, sou o que resta da memória da lareira, do alimento dos pobres, dos aromas doces e silvestres.
Sou o retrato dos homens perdidos na solidão dos montes!

São Gonçalves
Foto-Dolores Marques
Podíamos falar do que não foi, dos silêncios, da incapacidade de dar, talvez porque nunca se recebeu. 
Como dar o que nunca se teve ? 
É preferível falar do que foi, do que a memória traz de luz, de momentos efémeros de partilha. 
Hoje lembrei -me do dia em que nos levaste a ver o mar. O mar bravio da torreira. Homens e mulheres, bois, redes, peixes a saltitar. Eu tão pequenina tive medo. E tu deste - me a mão ! 
São Gonçalves.

Foto -Camilo Rego.
Do chão de terra queimada, brotam as rosas e os espinhos. Passa o tempo paulatinamente, nos dedos a canseira dos dias, a peregrinação inequívoca de uma vida a colorir paisagens. Palavras, silêncios, gestos pintados à superfície da tela. As presenças e as ausências a percorrer a senda diagonal da cor. Podia ser uma bandeira, podia ser a matriz da beleza da terra numa tarde de verão. O aroma da rosa a perfumar sentimentos, aves a juntarem ao abraço protector da cor. Poderia ser a sombra e a luz ! 

É apenas o símbolo da passagem das estações numa terra de ninguém.

São Gonçalves 

Tela -Tiago Paço.
Sentou -se no sofá do café, o sol da primavera expreitando pela janela, raios solares beijando os traços do rosto, um odor de canela e gengibre perfumam o espaço. Apenas a música de fundo perturba o encantamento da tarde. No espaço do silêncio, a confidência de uma dor solitária. 
O contraste entre a beleza do fim de tarde e a denúncia de um sofrimento à espera de palavras. 
Há dias tão cheio de sombras e de luz, de silêncios e de palavras. 

São Gonçalves.
Densa a paisagem envolta na serenidade esverdeada da floresta. Corpos vivos contemplando a grandeza do universo. Avassaladora esta grandeza, esta alquimia de luz e de sombras abraçando o céu. 
No coração da floresta, a solidão aprazível do azul das paredes ocultando mundos interiores, vidas resguardadas dos ruídos das grandes cidades castradoras. 
Há uma paz indizível, um espaço de recolhimento e pertença. É tão vivo e intenso o brilho da luz, espelho da floresta, na transformação inequívoca da palavra poética. 
São Gonçalves. 
Foto -Dakini.
Escoam -se os dias num deslizamento continuo, luzes e sombras a ecoar num espaço de silêncios alquebrados. Para que que servem as horas e o tempo? Pergunto: 
E a sabedoria milenar das árvores responde num tom de silêncio a escorrer das ramagens despidas do inverno!
Esquece o tempo e as palavras; dos homens aprende apenas a sabedoria do silêncio e a nascente, a fonte do amor e de energia.

São Gonçalves. 

Foto António Mattozzi.
Nesta dialéctica entre o ser e a essência,entre o que mostramos e o que se vê, entre o que o outro sente ou não sente, há a distância do conhecimento profundo e proximidade do acto de sentir. 

São Gonçalves
Falam os olhos de tanto silêncio, abarcam o mundo de fantasiosas sombras. Registo o brilho e intensidade e o murmúrio das vozes presentes. 
Acolho a distância num abraço profundo. 

São Gonçalves.
Anos e anos a contornar a tormenta 
A fintar os desígnios dos deuses e dos homens. 
Anos e anos a murmurar silêncios , as mãos trémulas, carregadas de esperança. 
Na página dos livros, as madrugadas eram menos penosas. 

Quises-te sempre fintar a sorte, encontrar um propósito que fosse verdadeiro. Mas nada te afastava dessa incapacidade de contornar a desventura.

E mesmo assim , são suaves as palavras, e mesmo assim não trazes nos olhos a cor negra da tormenta.

São de luz as sementes que carregas na palma das mãos.

São Gonçalves. 

terça-feira, 14 de março de 2017

Caminham por trilhos de mundos paralelos, marcam no chão pegadas invisíveis. Não temem o mundo, a insensibilidade dos homens. Devagar, muito devagar alcançam universos desconhecidos. 
Não se olham, apenas o toque, a força vulcânica de se saber mulher, sibila de mundos oníricos. 
Em intensa conexão a universos invisíveis, é com as mãos que constroem os caminhos da luz. 


São Gonçalves.

Tela -Edite Melo
Contemplo a cidade deste lado da fronteira, a luz de fim de tarde traduziu no coração o sobressalto da nostalgia. Inquieto é o assombro que veste o olhar de matizes outonais. 
A distância entre mim e a cidade revela uma inquietação surda, as palavras resurgem silenciosas e fugazes. 
Somam - se os dias os anos , a lembrança dos lugares de pertença ainda são espaços de eterna lucidez entre a memória e o presente tão pacífico. 
Adentra -se o olhar nesta cidade, coração onde se fizeram tantas viagens ,onde se combateram tantas batalhas. 
E nos resguardo da história,a simbologia inata da construção do Ser em evolução. 
São Gonçalves. 
Foto -Rosa Santos Mouzinho.
Às vezes não há palavras,apenas o silêncio a arrastar imagens, o símbolo dos dias a encantar promessas , desvarios. Pergunto -me se ainda vale a pena ? Se ainda as palavras merecem o eco dos sentimentos. O mundo está pleno de desventura, a dor trespassa o coração dos homens, há tanta amargura e desamparo no coração das mães estéreis. Mas o mundo também é o retrato da criação. A grandeza do universo a mostrar -nos o lugar do encantamento. Dou então lugar ao entendimento, a esse lugar onde vislumbro o lado belo do mundo.
São segundos apenas, franjas de esquecimento a mostrar a beleza de um céu pleno de emoções. A serenidade estampada no azul, a luz tardia do sol a afugentar as coisas menos belas . São pedaços, fragmentos, sensações inauditas de um momento de completude.
É o silêncio !

São Gonçalves.
Foto -Rosa Mouzinho Santos.
Adentro no silêncio da noite, nessa maciez deslumbrante e clara. É de calmaria o vento do norte, uma vaga de luz observa a horizonte. 

E eu danço o bailado das sombras. 

São Gonçalves. 

Foto -Edite Melo.
Subtrai -se ao medo o arquétipo do entendimento, a beleza deixou de ser um fenómeno intocável, escondendo máscaras, véus, brilho no inconfundível olhar dos homens. Se de mitos se constrói a originalidade primeira do mundo, não é de máscaras que se modelam o ideal dos sonhos. 

Subjaz no inconsciente a visão de mundos paralelos , o mito do intocável transcendente. 
A sombra da luz na precaridade dos sentidos. 

São Gonçalves.

domingo, 12 de março de 2017

Da calmaria fez caminho 
Passos incertos em terra batida
Na solidão, sombra das árvores, inventou a rota do devir. Largou 
as certezas e os medos, auscultou
os batimentos incertos do mundo. 

Perguntaram -lhe -onde vais ?
Não sei -respondeu.
Por todos invento caminhos
Para todos haverá estrada.

São Gonçalves.
O silêncio é um porto de abrigo entre o rumor dos dias e as sombras da noite. 
Descem dos céus lâminas de luz 
O explendor cortante da beleza transcendente do universo. 
Ali, naquele pequeno espaço perdido dos homens, o olhar do divino espreita e acolhe no seu regaço o desamparo da humanidade. 

São Gonçalves

Foto - Luis Jesus
Das sombras e encruzilhadas traçou um roteiro. Entrou já tarde em mais uma aventura. Visitou cidades desconhecidas, onde não entendia a linguagem dos homens. Furjou a coragem, disse, não cederei ao medo, ao desencanto, e não cedeu. 
Inventou uma linguagem de palavras inventadas, arrancadas ao vocabulário da coragem e da força que vem de dentro. 
Serrou os dentes, sorriu a quem não a tomou por estranha.
Era assim que sentia, era assim que aprendia. Para escrever, não bastava ficar em casa e estudar a gramática da vida em compêndio amaralecidos , era preciso serrar os dentes, enfrentar o mundo e os homens, seguir os passos da sua luz, mas sobretudo da sua sombra. Olhar para dentro da sua solidão, e para dentro da solidão dos homens.
Era preciso viver, e roubar ao medo o espanto da aventura.

São Gonçalves.

Foto-Dascha Frielova
Há sempre algo de eternidade no olhar as pequenas belezas do mundo. 
Há sempre uma memória que se esboça na densidade da bruma. 
Há sempre um traço de ti e de mim.

São Gonçalves.
Chegaram devagar na brisa morna do entardecer, 
Chegaram simples, imaturas, traziam com elas a frescura das manhãs de primavera, o mágico timbrado dos sinos, no alto da igreja, tocando as ave marias matinais. 
Falavam de saudade, de ternura, falavam de memórias e de segredos guardados. 
Eram longos os caminhos por onde percorriam. 
Eram a nascente de um rio de histórias antigas , de amores inacabados, de coragens vencidas.
Eram a alma e a cor a transbordar poesia, a coragem de quebrar barreiras e medos.
Ergueram - se devagar do mais profundo abismo, aninharam -se no útero fecundo e acolhedor do poeta.

De onde jorrava a fonte das palavras ?
Jorrava dessa inquetude imensa de descrever o invisível, o intocável.
Nessa vontade imensa de criar beleza em terrenos férteis de desalento e desencanto.
Fizeram -caminho e caminhada, nascente, rio e enseada.
Fizeram -se mundo
Deram voz
Sede de saber , saciada.

São Gonçalves. 
Silente a voz dos sentidos, a força vulcânica de um beijo. 

Sinto - te presença misteriosa das noites, mensageiro de esperanças e de medos .

Sinto - te, alma peregrina no meu corpo. 

São Gonçalves.
As mudanças vão -se fazendo aos poucos, lentamente. No início é apenas uma ideia longínqua, um cansaço dorido da rotina, depois, a ideia começa a tomar forma e o ciclo da vida e a sua transitoriedade acontece. 
De repente, tudo fica mais claro, é impossível voltar atrás, e os complexos desígnios da vida tomam forma e aceleram o processo interior de mudança e de continuidade. 

São Gonçalves

Na fragilidade da flor
O toque macio da chuva
A luz brilhante da lágrima
O tom de uma cor primária
A timidez do beijo 
A promessa de primavera !

Na fragilidade da flor
Toda a magia da vida.

O renascimento da esperança
A mágica descoberta da luz
Um coração de mar
uma tonalidade de alma.

A paz e a serenidade
No tímido toque da chuva.

São Gonçalves
No silêncio da casa, a espera, o cântico mudo das águas, a solidão angustiante do vazio.
Olhas para dentro
As portas e as janelas fechadas
Pressentes a mudança
O caminho brumoso do desconhecido. 

Serão precisos dias meses
Serão precisos mil passos
O desapego da velha casa

Caminharás sozinha, por entre a dor
O terrível desconforto do abismo
Afastarás os fantasmas e os medos.
A lembrança do passado recente

Um dia enfim, olharás a casa iluminada uma luz nova nascente
As portadas e as janelas abertas
E a esperança pendurada nos muros
Nos dias, na vida !

São Gonçalves.

Foto - Graça Sousa Feijó.

quarta-feira, 1 de março de 2017

O que é a felicidade ? Pequenos momentos, pequenos detalhes dentro de um quotidiano de múltiplos sentimentos, demasiadas inquietações. O longo abraço de um filho, a brandura suave do sol de inverno beijando o rosto, numa manhã clara, um passeio a pé por entre os sons do vento nas árvores e os primeiros cantos das aves. O sabor do chá quente e o perfume doce partilhado num fim de tarde com uma ou duas amigas. A partilha das palavras e das leituras dos livros.
Fragmentos, sinais, pontos de luz a iluminar os dias.
São Gonçalves
Chegamos a uma altura em que certas coisas já não nos magoa. Aprendemos não sem esforço a amar o caminho para dentro, o caminho do silêncio. Aprendemos a amar os momentos, a presença quando tem de ser presença, a ausência quando esta também se impõe. 
As pessoas chegam e partem no seu tempo, não precisamos impor nada. Aceitar e continuar. 
São Gonçalves.
Demora tempo, o tempo necessário para interiorizar o quanto tudo não passa de uma grande ilusão.
Então, agarramos o que resta das palavras, da convulsão da metáfora vencida. Um limbo a estabelecer limites.
O limite do aconchego do silêncio.
Esse ninho de úteros virgens e quentes.
São Gonçalves
Apenas a luz do sol ainda me visita neste lugar ermo, nesta solidão avassaladora. 
Vi passar por mim os anos
Vi as crianças crescer 
Jogar à corda e ao peão ! 
Passaram por mim tantas luas e luares,o sol nasceu e morreu vezes sem conta, tantas quantos os dias em que protejo estas paredes. 
Amei a luz, os dias de invernia
Amei os homens e as mulheres

Ouvi gritos e lamentos
O sofrimento do corpo e da alma!

Às vezes não entendia a linguagem dos homens, esses complexos símbolos de partilha !
Às vezes calei o murmúrio das mulheres, esse caudal imenso de tristeza, contido na represa do olhar.

E por mim passou tanto mundo.
Agora ninguém me vê, ninguém aceita o meu abraço, ninguém ouve o meu lamento.

Sou apenas a face visível da história dos homens.

São Gonçalves.

Foto - Jorge Meirim.
O que fazer quando um amor da adolescência reaparece no quase morno quotidiano ? 
Como é aceitar o sonho, a vertigem calada do assombro, o terror da fragilidade?
O surrealismo do presente,a sombra do passado ? 
De repente, o corpo nu, a devastação da alma, de repente, todo o sonho, toda a ilusão de perenidade, de repente, a confiança absoluta no poder de sedução.
A fragmentação dos dias, o pensamento num complexo emaranhado de emoções, de anseios.

De repente, a morte, o olhar vazio e distante, a dor e a ausência. Num surrealismo crescente, assiste -se à morte dos sentimentos, à metamorfose do corpo.
São longos os caminhos da redenção, e um dia, acordamos na mesma cama, na mesma casa, e sabemos enfim, que tudo foi apenas imaginação.

São Gonçalves
Que dizer desta generosa dádiva da vida, desta distância que nunca foi, deste amanhecer de luz, bálsamo da saudade. 
Que dizer, quando uma voz regressa do tempo, e as palavras são as mesmas, tão cheias de tudo, mãos côncavas de ternura, sinais do tempo que não passou. 
Que te dizer, que nos dizer ? 
Que a distância apenas se sentiu nas horas amargas, e que o afeto sempre foi presença e conforto.

São Gonçalves 
Sobram lembranças de um tempo 
O tempo onde tudo era perfeito ! 

O toque da tua mão na minha 
O beijo da brisa , morna 
Nas manhãs
A despertar a estação do estio.
O sabor a mel das acácias
O aroma inesquecivel das mimosas.

Da infância, o aroma da vida a despertar o sentimento de pertença
A luz clara dos teus olhos.
O cheiro a ternura do teu colo fecundo.

O aroma da terra lavrada
O sabor quente das chuvas de verão
O teu beijo roubado
A carícia do desejo.

Sobram na minha pele
O toque e o aroma
O traço da tua presença
No refrão do poema.

São Gonçalves
Entre a luz e a sombra, há o pronuncio de eternidade que espreita pela janela. 
Deste lado do mundo, estendo o corpo cansado sobre uma esteira de retalhos, neste retalhar de dias e de noites, neste continuo desassossego do corpo.
Pouco resta da ternura com que perfumava a infância, esse tempo de raras inquiétudes e de imensas esperanças. 
Agora, neste pequeno espaço, de onde avisto cada vez mais perto os caminhos da eternidade, basta - me aquele pedaço de luz, bálsamo apaziguador das dores e das saudades.
Deste lado da vida, contemplo o céu e o mar, o cais silencioso da mutação da corpo e da eterna desesperança.

São Gonçalves.

Foto - Graça Sousa Feijó

Às vezes, tantas vezes, os dias passam sem uma réstia de poesia.
E como gostaríamos de contrariar esta tendência, ao tédio, ao desencanto, ao limite de cairmos no abismo das nossas próprias contradições.
Gostaríamos de não sentir nada
Vazio !
Não sentir a espada que nos fere no silêncio, 
A palavra proferida injustamente,
A crítica
A força incompreendida da deslealdade,
Gostaríamos que os ouvidos se fechassem,
Os sentidos se isolassem
E fossemos
Apenas pedra bruta
Bocas sem som
E fossemos invisíveis
Figuras sem medo.
E se a vida deixasse de ser sempre o fio que nos segura do caos
Da inquiétude
E se, tavez no limiar da dor ainda restasse fragmentos de humanidade.

São Gonçalves.
Na incerteza, o tempo corre lento, a cidade crepuscular silencia os prantos, os homens adormecem o último resquício de paixão. 
Os Deuses velam 
A águas esperam
E a força do espaço abraça a rugosa terra 
E a luz ensaia um novo beijo nas formas esquivas da sombra. 

São Gonçalves.

Foto - António Mattozzi.
Vivemos no mundo em múltiplas realidades. Ao abeirar da noite, des construímos o dia, cenário de lutas internas e externas. Queremos conjugar o verbo Ser na sua plenitude, adiamos o querer, o desejar, infinitos de vontades adiadas. Apenas a fragmentação de íntimos estados de alma submergem no caos estilhaçado do espelho quotidiano. 
Sente-se a beleza fragmentada, o desânimo a pairar no sombrio contorno do olhar. Sente-se o esvaziar das forças, a tremura na voz. 
Sente -se o dias passarem escoados de sentido. E Ser, é um espaço a conquistar. 

São Gonçalves.
Descubro o tumulto do gesto, a ausência de afetos, o eterno marejar das tormentas num barco sempre pronto a navegar. Descubro o sabor do sal deslizando no meu rosto, a nostalgia das marés de inverno. O desassossego de quem tem sempre de partir, rumo a lugares desabitados. Descubro a sensação de vazio, um certo pudor de palavras e de presenças, de espelhos partidos, de rostos tristes e baços. Descubro o sombrio lugar de desapego, a lonjura infinita aos lugares de pertença. 
Descubro um mundo de evidências cruéis, e fujo, fujo sempre, para dentro do silêncio das palavras. 

São Gonçalves.
Aprendi com a sombra os desígnios de um coração solitário. Olhando os espelhos, inventei braços e abraços, inventei a presença, corpos sempre tão distantes do meu, almas coladas à placidez da memória. 
Rasguei cartas, suprimi memórias e gestos. Inebriada de silêncios, julguei possuir o que nunca tive. 
Apenas guardei, entre o espaço do corpo e a memória do gesto, aquele abraço, demorado, silenciado, interdito. 

E hoje, das palavras que julgo saber o significado, materializo o meu e o teu corpo em poema. 

São Gonçalves.