Já tinha sido assim com o seu avô, com o seu pai, todos os anos as águas galgavam as margens do pequeno rio e inundava a aldeia.
O rio a ignorar o tempo e os homens num desassossego invisível, a natureza inconstante invencível, a transtornar a organização das gentes, tudo tão precário na passagem do tempo.
A solidão a impor-se a despir as vontades e os desejos num tecido já frágil, a invadir os terrenos alagados transformados num mar de cor cinzenta escura. A aldeia votada ao silêncio das águas e à forte corrente do desespero.
Pela manhã o vento calmava o seu furor, a brisa matinal desenhava silhuetas na sombra das águas, o sol brilhava sobre aquele leito onde se escondiam os detritos de um rio voraz e violento. As mulheres ficavam em casa, as crianças subiam ao monte mais alto para contemplar a aldeia, esse mar inesperado isolando o mundo.
Era então que tu saías de casa, botas altas, o cigarro no canto da boca, e te fazias a esse mar de águas calmas. A bateira, pequena embarcação de três tábuas, fazia-te atravessar o espaço, o tempo, a memória. Com a vara, cortada aos salgueiros na última primavera, empurravas a bateira, empurravas a vida, e empurravas a tua própria solidão. O vento suave abraçava-te, puxavas de mais um cigarro e esquecias momentaneamente do teu propósito de vida.
Apesar de todo o avanço tecnológico, do tempo em que tudo se compra, tudo se vende, das grandes autoestradas a rasgarem e a dividirem os campos e aldeias, apesar da aproximação virtual dos computadores, dos telefones, dos grandes espaços comerciais, apesar de toda a transformação social e coletiva, aquele era um momento de conexão com o antepassados e o seu mundo presente.
Naquele espaço, com água a perder de vista, a aldeia isolada, um homem enfrenta a sua solidão e a sua frágil existência.
São Gonçalves
Foto-Luis Jesus
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