O silencioso canto das aves migratórias

O silencioso canto das aves migratórias

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Não é de inquietação as luz dos meus dias
esta claridade crescente na menina dos meus olhos 
este acordar devagar nas madrugadas 

despe-se em mim todas as sombras
gestos inúteis
com que tatuei os silêncios

o livro que agora escrevo é uma metáfora de vida
o silêncio já não tem nome nem morada
e eu apenas clamo a semântica da liberdade

esquecidas as vozes cortantes de ironia
finjo que não sei o nome das coisas
e das palavras interditas

desatei todas as amarras
essa amálgama de silêncios incertos
e só por isso valeu a pena

o caminho das palavras
num grito libertador e poético.
O corpo pesado, longos sãos os caminhos que te podem levar ao verdadeiro sentimento de plenitude e serenidade...as memórias são por vezes um traço, ora negro, ora claro; o espírito revela -se, espraiando-se num planalto de luz e sombra. A exuberância do azul acalma os temores, os gestos em decadência. Contemplas a luz do sol, nessa manhã primaveril, sentes a vida a tomar um novo brilho, um novo sentido, porque é de luz que inundas os olhos cansados de tanta escuridão.

Na solidão do quarto procurava as palavras
A conjugação perfeita da sintaxe
Para dizer do seu mundo
Para aclarar sombras
Dissipar medos
A explicação primordial do seu caos interior!

Não inventava nada
Ali, tudo permanecia quieto e transparente
O que fora, o que perdera
O que amara e como amara
A solidão das cidades revisitadas, cinzentas e frias
A dor da não pertença, da sublime ausência!

A metáfora do poema desvendava-a ao mundo
Sem pudor, sem preconceito!
Quando maio chegou, tu eras a luz de uma nova estação a despontar!

O coração pleno de ti
De mim, de 
Nós! 

A primavera das nossas vidas a florir
No nossos corpos!
Na vontade de viver!

Quando o tempo da monção chegou
Não houve verão, nem outono
Nem canto de pássaros a alegrar os sentidos!

Já não houve festa, nem risos, nem abraços!

Apenas o teu e o meu,
O nosso silêncio a rondar os cantos da casa!
Cada um esconderá de si o que mais lhe convém!
No olhar, a nostalgia das madrugadas 
Sombras a refletir em espelhos de ansiedade.
O que trazes contigo nem sempre demonstras. O sorriso dos dias alegres. A dor de uma ausência!
A casa da infância inabitada!
Um sentimento a desabrochar no contornar dos dias.
A sintonia do silêncio no fumegar do café da manhã.
Ninguém saberá da tremura dos lábios , nem do desejo no brilho do olhar!
O teu mundo é uma casa de espelhos, reflexos de um Eu que apenas te pertence.
Véus semi transparentes
Raios cintilantes a riscar no coração e na simbologia das sombras!
Silenciosas as árvores abraçam-se na luz coada da manhã. 
Dão- se por inteiro, sem medo!
Almas distintas no ser e no querer,
Seiva, flor, fruto !
Energia divina a conferir ao mundo a lição da luz!
O céu cinzento não é um prenúncio de tempestade, nem a árvore despida a semiótica de frieza.
Morno o tempo, a brancura rósea das flores indicia o caminho do renascimento!
As madrugadas já não gelam o corpo e os sentidos.
Abre- se uma brecha de claridade!
Até hoje não sabia porquê a vida se repetia num movimento circular, voltando sempre ao lugar do vazio, do constante recomeço! 
Nada lhe fora dado sem esforço!
Mas o que custava mais era esse karma de nunca chegar a um porto seguro!
As palavras deturpadas, os gestos mal interpretados, o caminho sempre a fechar- se , o céu a escurecer, o corpo sem chão onde se equilibrar.
A realidade era por vezes excessiva!
Era de excessos que andava cansada!
De si, da vida, dos outros, da perda , do vazio!

Apesar dos desacertos, o conforto chegava nas palavras de algum amigo, num abraço inesperado, no aconchego da palavra esperança!
E era de esperança o olhar no meio da tempestade!
Não há silêncios gravados nas paredes das casas habitadas pelos muros. 
O vento sopra devagar, o sol aquece as velhas relíquias que um dia alimentaram o coração.

Não há silêncios nem distancias que me impeçam de chegar.
Diziam -lhe que se tinha fechado, costurado a vida em pedaços, fragmentado os afetos!
Diziam -lhe tanta coisa. 
Os homens sabem sempre tudo, sem nada saberem. 

Mas ela escondia - se nos movimentos incertos dos seus passos, na quietude das palavras, no sentimento encarcerado à séculos dentro da pele.

Os homens sabem tão pouco do silêncio ! 
Dos estilhaços dos dias sobrevivia na luz opaca de um sol de janeiro! 
Escondia por vezes o rosto e os sentimentos. Bebia sem avidez a luz coada, por detrás dos vidros, a melancolia era o seu modo de ser e de estar!
Silenciosos os gestos, gastos de tanto querer! 
Amara! 
Sempre amara a vida, os homens! Nunca viveu de outro modo!
Teceu à luz do candeeiro os fios do tempo e da vida, correu cidades, países.
Viveu dentro dos livros que amava, o destino que lhe roubaram!
Era por vezes o espelho de Perséfone, de Io, Sisifo a carregar o peso dos dias!
Era a metade escondida da realidade invisível!
O espelho da alma que não se deixa vislumbrar!
Era a matéria visível de uma luz que só ela sabia existir!

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Conhecia o som do silêncio e o do cântico dos pássaros! Lia com vagar os signos do mundo. De si foi aprendendo a descodificar o sentido das perdas, o sinais do rosto, a nostalgia no olhar! Sentimentos nascentes a despontar no brilho tênue do olhar!
A serenidade chegou devagar, nas pequenas coisas, nos gestos do quotidiano. 
- um dia de cada vez 
Dizia para acalmar os sentidos!
Aprendeu o mundo com espanto! Com os anos deixou entrar em si a lição do desapego. Tudo haveria de ter um fim! As pessoas partiam, as situações acabavam, nada ficava, nada persistia no tempo, na vida, nos dias . 
Contava apenas consigo para seguir o caminho. Nunca perdeu a ternura, a esperança. O que realmente importa nunca deixou de ser presença na sua casa, no interior do seu coração!

Por agora faltam- me as palavras, o ritmo, a métrica do verso.
Falta- me a semântica do desassossego 
A voz da alma
O outro eu que se desdobra em figuras de linguagem, em imagens poéticas que descrevam os dias!
Os dias...
Tão surrealistas, tão prenhes de silêncios.
A alma rasgada
O turbilhão de incoerências 
Pessoas, coisas, papéis 
Tudo tão debordante de inquietude!
Nada é seguro
Nada se constrói !
A vertiginosa descida ao ínfimo do nada!
Os erros a marcar o destino
O futuro tão abruptamente incerto!

São Gonçalves
Alguma coisa de alma, alguma coisa de sentimento a surgir no matagal da desesperança. 
Apesar de cinzentos os dias, é de luz o sinuoso caminho da redenção .

A manhã a trespassar o corpo, fria, solitária, grandiosa de promessas. 
A luz de novembro a iluminar os sentidos, a nostalgia no olhar.
De que são feitos os dias vazios, silenciosos?
Há um descampado a submergir á volta do teu corpo. Há a memória de tantas vidas vívidas!
Há um inverno a atravessar, os ramos desnudos.
Há uma primavera que haverá de chegar ! 

São Gonçalves
Como sempre, ainda me visitas em dias de tempestade!
A tua memória sempre tão viva, tão acesa. 
Ainda me lembro quando me indicavas os livros que eu deveria ler!
Umberto Eco, Carl Sagan, Vergílio Ferreira!
Para mim eram leituras difíceis, para a menina mulher que só sabia pegar no cabo da enxada!
Mas tu insistias!
Como me fizeste acreditar que eu seria capaz de voltar à escola e estudar!
Foste o primeiro de todos os amigos, de todos amores 
Foste o farol e a direção 
A luz e o caminho
A travessia da ternura no meu corpo de mulher!
Daí, desse teu mundo etéreo, sei que me vês! Sei que não partiste naquela madrugada de Setembro!
Porque tu sempre estiveste, em palavras e silêncio, em ternura e aconhego!
Hoje, lembro- me de ti, e sei que nunca partiste!

São Gonçalves


Ausências

Vivemos num tempo de vazio
Nas velhas praças 
Apenas os bancos de madeira 
Se cumprem, solitários, 
Transgridem a leis do espaço!

Faltam homens, mulheres, crianças 
Falta os sons dos pássaros
O chiar de um gato, o latir de um cão!

Falta a velha banda a tocar no coreto
Os jovens rindo, bailando
Amando o mundo de olhos esperançosos

Agora, o bailado é de silencio
Os homens morreram
As crianças partiram, as mulheres
Cozem a amargura e a saudade
Em tecidos escuros e gastos

Apenas uma árvore silente
Acolhe o canto dos pássaros 
Na primavera fugaz do devir!

São Gonçalves
Dizia do mundo um espaço de dúvidas e anseios, a voz a ecoar algures , do outro lado da montanha. O temor dos invernos, essa estação sem luz nem calor! Encondia- se na matriz da terra, na força das árvores. Rasgava, então, as vestes e o corpo, e renascia sedenta de luz, de néctar, de transformação!
Sabia da fragilidade do corpo!
Conhecia a efemeridade do tempo!
Como Perséfone, habitava dois mundos, amava a noite e o dia, o pecado e a salvação! Entregava-se à claridade das manhãs, ao calor de verão! Das flores colhia o mais saboroso néctar!
Morria no torpor das tardes raiadas de vermelho, a nostalgia do crepúsculo, aspergindo sinais de despedida.
Longas eram as montanhas onde os homens carregavam as suas vidas, Tal Sisifo a carregar as dores do mundo!
Das pedras, escutava os rumores do silêncio, das flores o alimento da palavra. Nada era por acaso, no coração selvagem da mulher entregue aos desígnios dos sentimentos mais intensos.

São Gonçalves.
Foto- Manuela Nobre
Era uma criança vagueando pelas ruas. A criança que ainda existia dentro dela. 
Seria a procura do tempo de inocência? Um lugar de abrigo? O conforto na travessia do deserto?
Era a mão que a sustinha!
Era o obstáculo a transpor, o vazio!
O medo, a perspetiva de abandono, a perdição!
O grito a ecoar na noite funda e solitária!
A vida a querer vingar dentro de um pesadelo!
As manhãs, mornas, lisas, silenciosas.
Eras tu a transferir a angústia em silêncios!
A tua mão a confortar a desilusão e o desencanto!

São Gonçalves
Todos os dias a vida põe á prova a nossa capacidade de amar e de perder 
Só quem ama profundamente conhece o sentido da perda, e, de como esse sentimento é tão intrínseco ao conhecimento, ao crescimento interior. 

São Gonçalves.
Já não sei onde guardo a memória da casa, o útero aconchegante do corpo. A claridade, a essência do Ser em construção. 
Eram lugares onde o azul do céu abraçava o corpo de mansinho! 
Tudo era mais sereno. 
As vozes cristalinas a lembrar o cântico da génese. 
O tempo passou!
Tu partiste silenciosamente em Setembro, no fim da monção, nas madrugadas nebulosas.
Tento lembrar as tuas mãos calejadas, fechadas em forma de útero acolhedor.
Tento encontrar o sentido dos dias, a direção da velha casa azul no alto do monte.
Mas a memória é agora um barco a deixar lentamente o cais!

São Gonçalves.
Tela- Edite Melo.


São estas as madrugadas do espanto 
A vida a deslizar nas searas a céu aberto 
A força da luz adentrando-se na concavidade das horas! 

Há tanta força na constelação divina!

Mas, eu sou o pequeno grão espalhado no caminho.
A melancolia da terra lavrada 
A desesperança no colo das mulheres sem pão. 

A voz e o silêncio rasgado
O grito das mães famintas do riso dos filhos. 

E, eu, me resguardo no silêncio das árvores, na cadência do azul do céu! 

Na vontade peregrina de querer ser mais do que apenas , abraço. 

São Gonçalves
Ainda que a voz se altere!
Ainda que o silêncio seja um bálsamo nas manhãs tingidas de bruma, 
Ninguém saberá descodificar uma alma fragmentada na memória da ruína.

São Gonçalves.
Perdi a conta ao tempo, á distância!
Distantes são agora os lugares onde a matriz era uma nascente a correr de mansinho.
Sinto- te presença constante nos afetos 
Na memória tantas vezes revisitada. 

És o primeiro dos primeiros gestos de ternura.
És o meu eterno menino !

Daqui, deste tempo e deste lugar, encurto a distância que separa.
Das palavras faço abraço
Da metáfora e da imagem o gesto, o modo de ser presença.
De ser luz na penumbra
De ser voz no silêncio. 
Apesar de tudo sobra a beleza das coisas simples no meio do absurdo que são os dias de desapego. Tudo não passa de uma ilusão quando a vida nos mostra o lado amargo da existência. 
Como sonâmbulos, os homens empurram o corpo, meio enterrado na lama da desilusão. 
Chegam de todos os lados, são brancos, negros, falam línguas estranhas. Sentam- se á mesa e mastigam com dificuldade as migalhas do que sobra da mesa de quem comanda. As mulheres, de olhar triste e sonhador agarram - se ao pouco que lhes é dado como um náufrago no alto mar.
São dias estranhos estes!
São vidas que nos entram pelos olhos adentro sem dó nem piedade.
É a vida de quem espera apenas preservar um resto dignidade.

E a Rosa não deixa de mostrar que a beleza existe sempre para quem tem vontade de observar o outro lado da humanidade.

São Gonçalves 
De nada adianta evocar os dias que já não são de festa. A vida continua, na sua indizível simplicidade.
Trazemos no corpo as marcas da ligação umbilical. Doi-nos essa lembrança que carregamos no peito. Já não é o vazio que marca ou destrói o sentido do dias. É antes, essa marca de mulher que silenciosamente carregamos nas mãos e nos traços que marcam o destino.

São Gonçalves


Sabes mãe, hoje só o silêncio habita a minha pele.
Os homens roubaram me a palavra e o poema. 
A minha simbiose de poesia que um dia me ligou a ti.
Sabes mãe, a primavera ainda me lava as lágrimas e a saudade 
Ao longe os pássaros ensaiam um último cântico de adeus
Imenso, doloroso, inquietante!
Agora, apenas eu , tu e o silêncio efémero do desencanto.

São Gonçalves.
Sobra sempre alento quando o desalento se abate sobre nós. Por muito que se queira nada muda! 
A realidade é um obstáculo a contornar a cada esquina. 
Há uma pequena cratera a abrir sulcos nas mãos e nos olhos!
Há o eterno sentimento de desapego a pedir para nos conduzir a voz e os passos. 
Aceita se a vida tal como se embala uma criança. É assim, um renascer continuo a nas dobras do lençol amarrotado das noites de inquietação. A vida a querer vingar, os dias eternos e cinzentos.
A tua voz a embalar o desencanto.

São Gonçalves.
Quando maio chegou tu já lá estavas, eras a luz de uma primavera a despontar!

O coração pleno de ti
De mim de 
Nós! 

Quando a primavera acabou
Não houve verão
Nem canto de pássaros!

O mês de maio tornou se silencioso e frio! A solidão a rodar os cantos da casa.

São Gonçalves.

Levantou-se, tomou o café que a despertaria da noite e da letargia do Espírito. Pegou de novo em "Medeia" essa feiticeira meio louca que matou os filhos por vingança, por afirmação da sua força de mãe e de mulher ". Perguntou-se: até onde pode ir a coragem e a fraqueza do género feminino? Quais os limites para o sentimento de desespero e de abandono. Que forças invisíveis levam o ser humano a praticar as mais absurdas barbaridades! 

O café fez o seu efeito! O espírito acordou, o corpo tomou a a forma ativa dos dias. O desassossego da alma não passava apenas da imagem de um mito a renascer nas madrugadas. 

Para ser outro basta apenas sonhar ! Dizia o grande poeta !

E para ser Medéia? A força de se ser mulher na derrota, feiticeira da coragem e da vingança num mundo povoado de medos e forças patriarcais? 

Os raios de sol trespassaram os vidros da janela. O tempo afinal é outro. O Mito da mulher que mata os filhos por amor é por vingança é matéria dos Gregos .

São Gonçalves.
De quantos azuis se fazem os dias? De quantas marés se esvazia a alma? De quantas? 
O marulhar das ondas, o som do barco silenciado! 
A vida em voltas e revoltas!
O corpo cansado! 
De tantos azuis se embeleza o olhar, tonalidades luminosas ou sombrias. 
A imensidão do universo a conferir ao tempo a marca dos deuses.
Neptuno a velar os marinheiros
Atlanta á procura de um espaço de terra onde se repousar!
Mas os dias não se compadecem de mitos antigos. É de morte e renascimento o tempo presente.
São tantas as tonalidades de azuis no fundo do teu olhar!
São Gonçalves
Foto- Manuela Nobre.
O dia morre lá longe e eu, deste lado, habito o silêncio que me acompanha. As rosas ainda não começaram a florir no país onde vivo, o inverno tem sido tão longo, tão implacavelmente frio! E frias são também as noites em que te espero. 

Avanço lentamente nos anos, as crianças crescem e partem!

Demorei tanto tempo a entender o sentido da vida! A descodificar nos livros a magia do confronto como outro! Todo o meu mundo era um espaço vazio, lugares inabitados, palavras soltas, abraços esquecidos, noites insones!

O meu país ficou tão longe. O meu coração foi um longo lugar de exílio. Ali me me construí, silenciosamente e penosamente. Não conhecia as línguas da nova morada, ausentei - me da luz e das veredas.

Amanhã talvez a luz do dia ainda me traga a memória do oceano!

São Gonçalves
Olhava para dentro da cor
Como num deslumbramento inicial
Seria uma cidade
Um planeta longínquo 
O interior efervescente da terra!

Lava ou vulcão 
Sinais de sombras a emergir do traço 
Uma clareira vincada no meio da negra solidão 
Ferida aberta num coração destroçado!

Olhava para dentro da cor
Para o enigma onde se vislumbrava a metáfora 
A força triunfante da expressão 
Da transcendental alquimia da alma 
Em perfeita sintonia com o sentido estético! 

São Gonçalves 
Tela- Edite Melo.
Contemplo o céu que se espraia a horizonte, o olhos iluminam-se na luz clara que emanam os céus de Janeiro. Na retaguarda a sombra escurece a paisagem e os restos do que ainda sobra da nostalgia de ontem. Ao longe um bando de pássaros risca os céus de um tom cinzento. São como teclas de um piano esquecido no canto da sala. Há uma musicalidade que se desprende do vôo, uma cantiga de embalar que nos vigia o sono.
Regressam!
Partem!
Nesta manhã fria de janeiro não sabemos.
As aves tardias não vingam nas manhãs geladas de inverno. Há outras que tentam a claridade e a luz deste céu do meu país.
Mais uma vez me perco entre a luz e a sombra, na linha de uma neblina que me beija.
Não sei se habitas nesse pequeno espaço. Não sei se te materializas no voo da aves.
Apenas sei que vivo entre a realidade e o sonho, na fronteira de um país á beira mar.

São Gonçalves.
Foto- Em Spelbound .
Havia um templo de águas cristalinas
As cores afundando -se na espuma
O olhar dos deuses rodopiando 
Neptune, Vênus, Eurídice, Orpheu!
Fios de luz a contemplar as vagas! 

A dança das cores no tempo seminal
A ordem a tomar o lugar do caos.

Havia um templo
Uma casa de janelas abertas ao mundo
O limite do traço a conferir um movimento ascendente.

Havia a luz e a sombra
A presença e a ausência dos anjos de luz!

No silêncio da cor
Na permanência do sagrado
Na materialização do universo
Uma mão, a chama das estrelas que nunca se apaga!

A cor, a tela
A palavra, o poema
A metáfora dos dias a incendiar a passagem do tempo.

São Gonçalves.
Tela - Edite Melo
Frágil a manhã na delicadeza de uma lágrima furtiva.
Cristais de luz a iluminar os dias
As memórias
As novas promessas do devir contínuo e silente! 

São de imagens os frutos dos meus dias
Fragmentos delicados de cores a emergir do coração da natureza!

Invento uma narrativa de imagens e de cores.
São personagens construtores dum mundo sem palavras.
São gritos a descodificar os signos do mundo!

São assim os meus dias!
A metáfora da imagem a brilhar no espelho da lágrima furtiva do mund

Da terra emanam silhuetas fulgurantes 
Murmúrios a clamar a luz de um novo dia!

A respiração do mundo
A aspergir sinais de fogo
Sinais de vozes esquecidas! 

Torno ao início do ciclo 
Da terra os deuses sussurram
A respiração da luz! 

Nem sempre me sinto desperta
Nem sempre me disponho a entender os desígnios. 

Os meus caminhos estão ali
Sinto, mas não os vejo
Silencio os passos, os gestos 
Evoco a transmutação das cores 
Dos símbolos escondidos no traço! 

É junto ao céu que a luz é mais límpida 
Cresce ali a claridade apaziguadora dos dias!

Mas é no interior da terra que o silêncio 
Aflora rente á boca
Na convulsão da matéria 
Na distância que separa a palavra e o poema!

São Gonçalves. 
Tela - Edite Melo.
Sentava-se ali a contemplar a solidão do mundo e a sua.
Nunca duas solidões se aproximaram tanto!
A vida era tão pouco no meio de um vazio tão pleno de beleza. 
Pensava que era loucura!
Pensava que era perdição! 
Mas era apenas só mais uma sombra perdida na imensidão!

São Gonçalves
Nos momentos de maior conflito interior, a realidade aparece -nos baça, despida de beleza, de grandiosidade. Somos figuras á deriva num mundo de incredulidade e agonia. Somos pedaços de ramos a sobressair de um tronco antigo habituado às invernias!
É nesses momentos que procuramos a horizonte a luz da hora seguinte. A firmeza nos passos do dia de amanhã.
Contemplamos o céu, descodificamos o divino por entre a densidade das nuvens e o cinzento das memórias.
É por entre a dor e a sublimidade emanando dos raios solares que o corpo se levanta e a vida continua.
São Gonçalves


Em todas as madrugadas o beijo da luz a quebrar o silêncio da noite. Deste lado do rio contemplo a cidade e o lençol de águas paradas. Pergunto de que sonhos são feitos os dias dos homens? 
De que sonhos? 
Vi passar por mim os dias, os anos, os séculos! Vi as crianças tornarem -se homens. A alegria transformar-se em tristeza, depois em dor. O riso livre, num trejeito minguado nos cantos da boca.
Vi a passagem de sóis e de luas.
Crianças sujas, mirradas pela fome e pela solidão!
Olhei a minha solidão e a solidão dos que se deitavam nestas águas pardas.
Vi o espelho do teu rosto nas noites em que de longe vigiava os teus temores!
Vi o mundo transformar-se, os homens perderem - se!
E no fim eu e os homens consumamos os mesmos desígnios.
O tempo de iluminar a escuridão dos outros, e o tempo de iluminar a nossa própria solidão.
Eu e os homens vigiando a cidade e o lençol de águas paradas.
Vigiando os dias e as noites!
A recompensa e a perda!

São Gonçalves.
Foto -Edite Melo.
Silenciadas as palavras e os gestos
O mundo gira 
Inconstante na sua variação outonal!

Da varanda da tua casa contemplas o horizonte
O céu em chamas
O rasgar da memória
Do tempo
A lembrança das ancestrais vidas!

Movimento crepuscular a vingar na sombra
As árvores
Testemunhas da passagem dos dias
Calam os segredos
E os medos
Fingem acariciar a metamorfose da luz
E tu
Na distância que separa o modo de ser
Investes todo o sentimento
Toda a vontade de abraçar o sentimento maior.

Na luz das lembranças últimas
No brilho da chama de um templo eregido no silêncio
Na metamorfose dos sonhos!

São Gonçalves
Foto - Fátima Guimarães.
Às vezes parece que a vida se instalou num canto qualquer, sem movimento, sem emoções, apenas uma ideia vaga de transformação se apega aos dias, às noites, ao corpo. Mas é por dentro que tudo se revolve, as dores no corpo, a inquietação permanente da solúvel efemeridade, ou uma ideia de Outono que se instala no espírito. Uma semana em que parece que nada acontece, e no entanto, por dentro, no centro da existência mais calada, sente-se a ressaca de um tratamento infindável, o cansaço das noites insones, a solidão de ser apenas um corpo frágil e inquieto.
Na visibilidade do outro que existe ainda dentro de nós, esse jogo de espelhos que nos faz continuar e acreditar, a confirmação de uma aceitação que se afirma e resiste.
Afunda-se a alma na literatura, na sequência cronológica do que fez a história literária de um povo.
E os dias continuam entre a realidade e o jogo de espelhos.
Sempre diferentes, sempre iguais.

São Gonçalves.
Às vezes eu gostava de não sentir tanto e tudo tão intensamente! 
Os que partem , os que chegam, os que são presença e aqueles que se fazem ausência. 
Não sentir tão intensamente os silêncios que magoam, ou as palavras sem conteúdo! 
Não conhecer o gosto amargo da injustiça. 
De ver uma sociedade a quem só o nome e o estatuto servem para cobrir os seus intentos.
Às vezes gostava de ser rocha dura que nada sente. Apenas ali ficar impassível olhando o passar do tempo, das intempéries!
Mas não, o meu destino é sentir, sentir tudo tão intensamente que até dói!
E essa é a mulher que mesmo assim continua... só ou acompanhada...mas não desiste.